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          Da dúvida dos fins e da urgência

 

          Na lógica da produtividade em que nos vemos inseridos, a desfuncionalização é um vetor na contramão. Trabalhar na desaceleração – ou na indagação sobre os méritos verossímeis da eficácia – é uma forma de repensar os ritmos e os valores que nos guiam.


       Alice Ricci, artista paulistana, vem caminhando constantemente nessa direção. Apega-se mais no ócio que na pressa, mais no redundante que no operativo e, assim, testa subverter mecânicas de trabalho e metas estabelecidas, refletindo sobre a noção de produção. Partindo de procedimentos ligados ao jogo e ao passatempo, Alice instaura novas temporalidades e sugere a possibilidade de potência no esforço em vão.


       Em Anotações, trabalho que se deu no início de 2015 (e que já desmembrou outras obras também interessadas na mesma questão), a artista contava tempos em espera. Enquanto enfrentava grandes filas, esperava o ônibus ou aguardava atendimentos, media o tempo que ia passando. Anotando livremente pela folha, essas notas numéricas iam assumindo formatos orgânicos, desprendidos e não calculados. Dessa maneira, mais do que uma tentativa de ordenação, a tradução gráfica desses intervalos temporais assumia um corpo próprio, espontâneo e não premeditado – algo próximo a sua própria natureza. No que implica anotarmos o tempo? Aonde nos leva sua contabilização? Trata-se de buscar a consciência de sua passagem inevitável ou de esvaziá-lo, já que a forma como ele está sendo vivido nada mais é do que a burocracia repetitiva de um registro sem função? Em Anotações, Alice propõe a medida do imensurável a partir de um esforço que não gera resultado. A grafia de um tempo no qual nada acontece permite sua própria soltura e emancipação.


        Já em sua série Crucigramas o trabalho parte de revistas de passatempo. Trata-se de imagens concebidas digitalmente de tal modo que cor, forma e preenchimento parecem ter sido definidos durante o processo da configuração do desenho gráfico daquelas peças. Mas existem ali duas qualidades distintas. Existem ali formas cujo preenchimento cromático delata timidamente uma gestualidade escondida. Sobre as páginas das palavras-cruzadas, Alice interfere no material impresso. De maneira sutil, quase imperceptível, mas ainda assim evidente, percebe-se a presença de uma mão participativa, contrapondo o esforço moroso e manual, próprio da ação cautelosa de um fazer artesanal, com o procedimento pragmático, seriado industrial. Um confunde-se com o outro. Sobrepõem-se de tal forma que não sabemos bem se algum deles conquistou soberania.

       

         Os Crucigramas de Alice também podem nos rebater de volta à década de 1960 – quando o universo da comunicação de massa que rondava o cotidiano começou a se fazer presente no objeto de arte –, ou à atmosfera concreta que pairou no Brasil uma década antes. A geometria e a ortogonalidade como interesse notório e as organizações espaciais figura-fundo denunciam uma aproximação com o pensamento estético concretista. Mas, enquanto esse concretismo histórico associado à premissa moderna progressiva batalhava em nome de uma racionalidade funcional, cujo esmero aspirava a melhoria e o reparo social, a geometria contemporânea de Alice busca a inoperância. Estetiza-se sem nenhuma pretensão transformadora ou reformista, lançando luz, também, sobre o papel da forma e da estética nos tempos atuais.


       Seu interesse pelo imaginário do jogo revisa as dinâmicas da competição e seus propósitos. Sublinha a noção de meta e esforço, mas intui uma ambiguidade latente que reside entre o tempo produtivo e o próprio tédio, já que sua prática nos aponta mais para uma busca pelo ócio do que para a fuga dele. Na sua lógica temporal, esse tédio poderia ser entendido como uma posição crítica de recusa à banalidade e ao modus operandi: como uma maneira autêntica de se buscar o novo. Aparece, então, como a não aceitação à qualquer coisa, tornando-se um dispositivo de esgarçamento temporal e de medição da sua própria velocidade.


         A precisão dos preenchimentos dos Crucigramas ou a minuciosidade gráfica de Anotações ou Pré-desenhos contrastam processos vagarosos com o imediatismo de um mundo exterior. Meta e monotonia tencionam-se em seus trabalhos e nos sugerem a revisão de nossos próprios ritmos. A desfuncionalização acarreta a obsolescência ou seriam as ineficácias das coisas e dos processos do mundo um fator já previamente dado de acordo com a lógica que impomos sobre nós? Lançando mais perguntas que hipóteses, o trabalho de Alice organiza-se a partir dessas ambivalências, rebatendo em quem o vê dúvidas que se acobertam nas precisões da sua formalidade visual. Como vítima e proponente ao mesmo tempo, Alice Ricci debruça-se sobre feituras ociosas, examinando-as desde dentro e nos evidenciando processos destoantes da normatividade. Pelo dissenso, possibilita-nos a análise das convenções e nos propõe um tempo em suspensão: uma possível temporalidade auditora das urgências e dos fins certeiros.

texto escrito por Paola Fabres (Porto Alegre, 1989) é doutoranda em História, Teoria e Crítica de Arte (ECA-USP), atua como pesquisadora, crítica e curadora independente e é fundadora e editora da revista digital Arte ConTexto. Junho/2018

alice ricci
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